domingo, 30 de outubro de 2016

Ariella - Capítulo 22

            Ariella encarava Dulce como se olhasse para algo místico e não sua amiga da vida toda. A desconfiança de Dulce, de que poderia estar esperando um filho de Diego, chegou até ela com ares de bobagem. Um segundo depois já parecia muito real, talvez uma certeza tão óbvia quanto o amanhã que sucede cada dia. Não era algo tão surpreendente assim, afinal, quando se passa muitas e muitas horas na cama com um homem sem tomar quase nenhuma preocupação com contracepção, é quase como se você disse ao destino que esperava gerar uma criança.



Ela esperava? Não. Definitivamente, esse não era o seu objetivo ao transar com Diego. Objetivos, porém, pareciam frios, calculados e muito ineficazes para explicar qualquer fato de sua vida que envolvesse Diego. Assim como na década passada, agora ele novamente entrou em sua vida trazendo surpresas. Mas se ela não havia desejado ser mãe nesse momento, de Diego não poderia dizer o mesmo. Ainda lembrava-se com clareza de seu estranho amanhecer ao lado do marido após se casarem. De todos os absurdos que ele lhe afirmara, um foi mais duro de ouvir. “Você será mãe de um filho meu. Seu pai me tirou a mãe, você me dará um filho”, recordava-se. A estranha afirmação foi repetida tantas vezes que aquela antiga Ariella, ainda tão jovem, chegou a crer que ele realmente acreditava que aquela criança pudesse apagar os erros do passado. Em meio a tantas loucuras, essa foi a que mais a revoltou.
Porém, ela chegou muito próximo de tornar-se realidade. Em cada uma das manhãs de acordou após abandonar Diego, ela fez questão de obrigar sua mente a não pensar no ex-marido. Obteve sucesso. E a cada dia, percebeu ser mais fácil. O mesmo não podia ser dito da criança que perdeu antes de saber que esperava. Aquela perda foi uma dor que não sessou. No início conseguiu disfarçá-la na raiva e na mágoa que vibravam em seu peito. Foi mais fácil jogar para os ombros de Diego aquela culpa e afirmar para si mesma que ele era o completo responsável por ter gerado aquela via a qual ela jamais desejou nutrir e, igualmente culpado, por matá-la, ao obrigá-la a arriscar-se numa fuga temerária. Depois, já isolada e em terras brasileiras, veio a culpa. Infeliz e sofrendo ao ter de se acostumar ao seu novo corpo percebeu que, caso ainda estivesse grávida, a sua dor maior não existiria. Percebeu que Diego não fora o único responsável por aquele final triste. E que se como esposa não falhara, como mãe sim. E que não tinha o direito de cobrar de Diego aquela vida perdida quando ele fora o único a desejar aquela criança.
Mas e hoje? Dez anos não passavam na vida de ninguém sem deixar um rastro de amadurecimento. Qual peso uma criança traria para a vida dela? E como Diego reagiria a isso tudo? Em meio a tudo isso era preciso avaliar, ainda, qual a relação tinham. Afinal, tiveram um início conturbado, cortado por um acontecimento trágico, passaram mais de uma década sem conversar e após um reencontro efervescente, Diego entrou em sono profundo. Há dois meses Diego dormia num leito hospitalar, com o corpo enfraquecido e a mente perdida em algum lugar do qual até agora os médicos não haviam conseguido lhe resgatar. Alguma coisa, porém, a fazia ter a certeza de que, independente da relação que tinham ou teriam no futuro, ele receberia a paternidade de braços abertos.

- Vai me olhar aí para até que horas? Vamos garota! Pegue o teste e faça!

            Ariella obedeceu, mais por saber ser o certo do que por realmente ter dúvidas. Agora tudo parecia fazer sentido. Olhar para os risquinhos confirmadores a fez sorrir, mesmo tendo conhecimento de que aquela equação somente se transformava ainda mais difícil de ser resolvia, agora com mais um elemento. Porém, esse complicador que agora crescia dentro de seu ventre, por mais confusão que trouxesse, parecia uma grande notícia. Era o mundo lhe provando que sempre havia uma nova chance de concertar os erros do passado. E ela estava bem interessada em por um ponto final nas histórias do passado para iniciar um novo parágrafo com Diego. Talvez nem isso fosse o bastante. Talvez tivesse de ser um livro inteiramente novo. O importante mesmo era saber que havia muitas páginas em branco, livres para escrever o que quisessem.

            - Foi positivo, não foi? – Para Dulce a resposta também não poderia estar mais clara. – Está feliz?
            - Não poderia estar mais. – Sorrindo, Ariella respondeu antes de abraçar longamente a amiga. - É como se tudo o que aconteceu agora fizesse sentido, agora valha a pena. Pareço muito idiota?
            - Parece. Mas tudo bem, os apaixonados têm esse direito. Vá contar ao seu homem a novidade.




            Ariella, mesmo na montanha russa emocional em que se encontrava, percebeu que algo não se encaixava na postura de sua tão leal amiga. Aquela Dulce, serena, comedida e, principalmente, compreensiva ao referir-se a Diego, simplesmente não combinava com a amiga que conhecia. O encanto e Dulce pelo “conde espanhol” que conheceram naquela boate na argentina, ainda adolescentes, não durou mais do que alguns dias. A ela ele não podia se gabar de ter enganado. E depois de encontrá-la na Espanha e presenciar o triste fim do casamento, Dulce passou a nutrir por ele grande desprezo.  O fato dela ter se apaixonada perdidamente por Murilo e ele ser, além de seu sócio, ser um grande amigo, quase irmão, ajudou apenas para que Dulce aprendesse a respeitá-lo como empresário e empregador justo. Como homem, jamais. Ela nunca escondeu. “Porque um homem de verdade, não deseja manter à força uma mulher”, ela explicou quando Diego tentou selar a paz semanas antes dela e Murilo trocarem alianças, numa cerimônia a qual Ariella não compareceu. Os anos os ensinaram a conviver, não a gostar um do outro.

            - Porque sinto que você me incentivasse a dar uma chance a Diego? Há 11 anos ouço você pintar um vilão, mesmo quando reconhecia que ele era capaz de boas ações. – Ariella questionou a amiga.
            - Não gosto dele. – Dulce repetiu. – Mas gosto menos ainda da solidão na qual você se fechou. Sempre acreditei que outro homem apareceria em sua vida em algum momento e te mostraria que aquela paixão da juventude não foi nada além de amor de verão. Mas aí, o que nenhum outro conseguiu em uma década, Diego fez em um Carnaval. Eu me rendo. Não preciso gostar dele para reconhecer que ele a faz feliz.
            - Vai torcer por mim?
            - Eu sempre torço, minha amiga. – Dulce a beijou. – Quero ser a madrinha desse bebê. E assim que Diego acordar, avise que ainda posso lhe dar a surra que prometi dez anos atrás e Murilo não deixou eu cumprir. É só ele não cuidar bem de vocês.
            - Eu avisarei...assim que ele abrir os olhos.
            - Ele o fará, tenho certeza. Preciso reconhecer que ele sabe lutar pelo que deseja e, não será justo agora que a abandonará. Vá vê-lo.

            Nos contos de fada ou novelas, aquela seria a deixar perfeita para a mocinha dar a feliz notícia ao príncipe adormecido e, com um beijo nos lábios, fazê-lo despertar, feliz em saber que será pai. Infelizmente não foi assim.



            No quarto silencioso e com o coração cheio de expectativa, Ariella aguardou a enfermeira fazer suas rotinas hospitalares e anotações no prontuário médico. Ajudou-a na tarefa de banhar o paciente e certificou-se de que tudo estava bem, ou o melhor possível diante das possibilidades.

            - Seus batimentos estão um pouco mais acelerados. É bom sinal. Ele está mais perto do que ontem de acordar. – Lhe disse a jovem uniformizada. – A senhora ficará de acompanhante hoje?
            - Sim. Um homem virá visitá-lo no final da manhã e uma senhora idosa a tarde, mas eu permanecerei o dia todo. Pode liberar a entrada dos visitantes. – Ela referia-se a Murilo e Anita, pessoas que iam e vinham da Espanha nesses meses para não deixar de ver Diego. Por segurança, ela dera ordem de que, quando sozinho, Diego não recebesse visitas enquanto não estivesse totalmente consciente.
            - Sim, senhora.

            Assim que ficou à sós com Diego, Ariella lhe acariciou o rosto, deitou a cabeça sobre seu peito e fechou os olhos, fingindo estar em casa, com ele em sua cama. Parecia tão certa aquela imagem. O coração dele, tranquilo, contrastava com o galope acelerado do próprio peito. Sem pensar no que fazia e se ele podia ou não ouvir seus lamentos, contou para ele suas andanças pela Europa e os mal estares que sentiu. Percebeu que conforme o relato progredia, a voz ficava mais alegre, como que denunciando um clímax feliz naquele enredo.

            - Então hoje, Dulce me fez ver o que estava muito claro, mais eu mantinha escondido dos meus olhos. Eu...estou grávida. Você pode acreditar?! Vamos ter um bebê! Eu sei o quanto você quis isso. E tenho esperança de que essa notícia lhe trará felicidade. Nós podemos ser felizes, Diego. Só falta você acordar para...para sermos uma família e deixarmos tudo o que aconteceu no passado.

            Por um instante ela pareceu ouvir uma batida diferente, de ritmo mais intenso, vinda do peito dele. Achou que ele iria acordar. Apertou sua mão, beijou-se ambas as faces e viu as próprias lágrimas caírem sobre seu rosto. Mas ele não abriu os olhos. E ela foi trazida da ilusória esperança de felicidade para o mundo real e cheio de maldade. Uma voz há tempos não ouvia se fez ecoar pelo quarto, puxando-a de volta para 11 anos atrás.



            - Você não tem vergonha de proferir palavras tão infantilóides como essa, Ariella? Parece presa a um conto de fadas de péssima qualidade.

            Afonso olhava para a filha com expressão de decepção. Vinha lhe telefonando muitas vezes nos últimos meses, mas, sem ser atendido, precisou de uma ação mais enfática. Tudo porque o plano salvador que planejou para o feriado de Carnaval não gerou o resultado esperado. Era isso o que dava contar com auxiliares tão simplistas como empregados domésticos. Eles são úteis para acessar lugares particulares, mas, se precisassem pensar um pouquinho mais, já se tornavam ineficientes. Fora necessário mudar de estratégia. Chegar até o quarto de hospital fora até simples. Ele só não esperava ouvir aquilo que seus ouvidos registraram.

            - Então serei avô. Que decepção, Ariella. – Ele falou, mantendo a voz clara e os olhos fixos na filha. – Juro que você conseguiu me enganar por algum tempo. As notícias que li sobre você nos jornais me fizeram crer que tinha puxado mais a mim que a sua mãe. Mas não. Continua a mesma idiota manipulável de sempre.

            Ariella então saiu do choque e percebeu que mostrar-se fraca era o pior caminho frente a Afonso.



            - Manipulável, infantilóide, idiota...mas rica, querido papai. E ambos sabemos qual dessas características o trazem até sua filha.
            - Objetividade! – Ele afirmou, sorrindo friamente. – Está aí uma característica que você herdou de mim.
            - A única, espero. – Ela respondeu no mesmo tom. – Mas mantenhamos a objetividade: a torneira fechou há 11 anos, no dia em que o conheci de verdade. Nem mais um centavo do meu dinheiro. Achei que já tinha sido clara a esse respeito.

            A firmeza de Ariella mostrou a Afonso que ela era sim bem parecida com ele, ao menos quanto a lutar por algo desejado. Se no passado ela gaguejou ameaças que não cumpriu e, no final, negociou com Diego para que ele saísse ileso das acusações empresariais, com dívidas perdoadas e dinheiro no bolso, agora não parecia disposta a barganhar. Ele teria de ser mais esperto.

            - Minha menina, não seja tão dura com seu velho pai. Posso ter cometido alguns erros. Graves, reconheço. Mas sou o seu pai, mereço ser perdoado.
            - Na verdade, não merece não. – Ariella até gostaria de manter com Afonso uma relação mais amigável e assim resolver essa parte de sua vida. Mas desconfiava que afagos e visitas em feriados não eram o objetivo do pai. – O que quer?
            - Há meses eu lhe telefono, mando mensagens e contato o seu agente para mediar um encontro nosso. Na surte efeito. Qualquer aproximação minha é bloqueada.
            - Vou perguntar mais uma vez, o que deseja? – Ela desconfiava que somente o fim do dinheiro faria o pai humilhar-se assim. – Não lhe darei mais dinheiro para jogar fora.
            - Assim você me força a atitudes desagradáveis, Ariella. – Ele já não fingia com a mesma perfeição. – Você ganhou muito dinheiro nos últimos anos. Porque deixar seu velho pai passando necessidade por mágoas tão antigas quando, ao que parece, esse homem, que tanto mal te fez, foi perdoado. Eu não mereço a mesma boa vontade?
            - Não. Na verdade, toda a boa vontade que tinha por você foi gasta anos atrás, quando lhe dei uma verdadeira fortuna para saldar suas dívidas. Se desperdiçou, problema seu.
            - Mas minha filha...
            - Sua filha não existe mais! – Ela apertou o botão para chamar os funcionários do hospital. – Saia daqui por bem, ou eu chamarei a segurança.
            - Está bem...eu farei isso. Mas depois não sofra com as consequências disso, Ariella. O Brasil é um lugar a cada dia mais violento. Pessoas perdem a vida todos os dias por tão pouco.





            A ameaça ficou no ar, implícita, mantendo Ariella chocada, encarando Afonso e tentando decidir se deveria ou não levar a sério o que ele afirmava. Poderia ser algo tolo, afim unicamente de assustá-la. Ou, poderia ser real. Talvez não apenas um aviso, mas uma discreta confirmação de que o suposto assalto ou tentativa de sequestro não fora algo aleatório. O choque apenas foi cortado pelo abrir de olhos de Diego, que apesar do longo período adormecido não aparentou fraqueza nem confusão o bastante que o impedisse de encarar Afonso com a mesma força do passado.

            - Saia aqui! Pare de atormentar sua filha. – Disse com a voz fraca, porém clara e tão firme como sempre foi.
            - Volte ao seu sono, espanhol...isso é um assunto de família. – Afonso respondeu, enquanto observava a filha acariciar aquele homem.
            - Afaste-se da minha mulher. – Diego ordenou encarando o inimigo de uma vida inteira.

            Nada mais foi dito. Afonso deixou o quarto no mesmo momento em que uma apressada enfermeira entrava e logo saía dando a notícia de que o paciente havia, enfim, despertado. Ariella pouco observou de todos aqueles acontecimentos. Estava feliz em vê-lo abrir os olhos e emocionada com a forma como aparentava estar lúcido.

            - Você voltou pra mim, mal posso acreditar. – Disse ainda beijando-o na delicadeza de quem temia que ele fosse se quebrar.
            - Eu não iria embora por nada, não agora. – Diego respondeu.

            O reencontro foi interrompido pelos médicos que passaram a vir fazer testes. Todos se surpreenderam com a forma rápida com que ele obteve clareza mental ao acordar. Esperavam um período de confusão ou até mesmo esquecimento dos últimos acontecimentos. Porém Diego era capaz de contar em detalhes as últimas horas antes do assalto. De mãos dadas com Ariella, surpreendeu-se em saber que dormira por dois meses.





            - É inacreditável. – Ele então começou a aparentar algum cansaço.
            - Talvez seja melhor que durma um pouco. Tanto tempo acordado após meses dormindo são difíceis. – O médico afirmou.
            - Acho que já dormi demais, Doutor. Vou curtir minha mulher um pouco mais antes de voltar ao mundo dos sonhos.
            - Vou deixá-los a sós então.

            Eles então se observaram por longo tempo. Tanto já havia acontecido na vida deles que agora pareciam ter o direito a ficarem juntos. Ele acariciou seu rosto e afagou a palma de suas mãos, fechando os olhos ao sentir as pálpebras ganharem beijos tão leves quanto o bater das asas de um beija-flor.

            - Você precisa dormir, está cansado. – Ela entendeu que ele se rendia ao sono.
            - Deite aqui do meu lado.
            - Eu não posso!
            - Pode sim. – Diego insistiu. – Eles não negarão isso ao um Conde.
            - Você usa esse título só quando lhe convém. – Ela brincou, mas começou a tirar os sapatos. Era como se tivesse voltado a juventude.



            Voltaram a falar apenas quando ela já estava no leito, encostada ao peito dele. A mão dele serpenteou pela cintura dela até parar sobre o ventre, numa pergunta silenciosa.

            - Você ouviu! – Ariella agitou-se.
            - Do lugar onde eu estava, perdido entre o mundo dos vivos e dos mortos, ouvi sua voz me dizendo que nós seremos pais. É verdade ou eu delirei – Havia um fundo de dúvida na pergunta. Ele temia estar delirando.
            - Em exatos sete meses. Espero que goste da notícia.
            - Gostar? Essa palavra não chega nem perto de explicar o que se passa pelo meu coração nesse momento, meu amor.

            Diego logo adormeceu, cansado pelo esforço emocional e físico daquele dia. Ariella ficou acordada, curtindo aquele momento e fazendo planos para ser feliz a cada dia.


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