domingo, 2 de outubro de 2016

Ariella - Capítulo 21


            Dias se passaram sem que Ariella pudesse relaxar. A palavra dos médicos não tranquilizava. Eles preferiam não arriscar manifestações definitivas. Ninguém afirmou que Diego perderia a vida. Tampouco manifestavam algum otimismo. E esse desconhecimento de informações confiáveis tornava tudo ainda mais doloroso. Estranho também era não ser qual posto ocupava na vida de Diego naquele momento. Há poucos dias teria dito ser a ex-mulher dele, alguém de um passado distante e pouco importante na sua vida. Hoje...não podia mais afirmar isso. Não quando o viu lhe oferecer o mais doce dos sorrisos e o mais amoroso olhar.
            Junto da avó de Diego, Ariella se manteve sempre próxima do homem que tanto mudou sua vida. Marcou-a na juventude e, tão recentemente, trouxe luz ao seu coração. Em momentos de solidão na cabeceira de sua cama, quando apenas o bipe repetitivo das máquinas lhe traziam a esperançosa notícia de que Diego seguia lutando pela vida, Ariella refletiu e tentou compreender os percalços que a história deles já tinha passada. Muito do que originou a história deles nem mesmo eles sabiam. Se Afonso não tivesse entrado na vida de Ramón e Silvana décadas atrás, Diego não teria crescido sem o amor da mãe, em meio ao ódio do pai e nutrindo rancores pela família Amaral.



            - Você poderia ter sido tão feliz se meu pai não tivesse entrado em sua vida. – Julgando-se sozinha, ela afirmou enquanto acariciava os cabelos dele.
            - Talvez. Respondeu Anita. – Ela havia entrado discretamente. – Mas ele não teria conhecido a única mulher que verdadeiramente amou. Posso apostar que meu neto não mudaria esse fato em sua vida. Apesar de desejar apagar muitas das suas atitudes.

            Anita presenciou a dor de seu neto por toda a vida. Primeiro por crescer no rastro de sofrimento deixado por Afonso Amaral na família Bueno. Depois por, ainda na imaturidade, não saber lidar com a própria dor, realizou uma série de besteiras. Cometeu crimes que poderiam ter lhe colocado atrás das grades. E recebeu castigo ainda mais duro. Foi condenado a assistir e assumir a culpa pela dor de quem descobriu amar. E o fato de Ariella ter lhe dado as costas sem conseguir oferecer o perdão piorou sua dor. A melhora dela no Brasil, festejada por ele na Espanha, não amainou o sofrimento.

            - Vá descansar, meu bem. Eu fico com meu neto enquanto você vai em sua casa. Fique tranquila. – Disse a senhora, ansiosa por ver o neto manifestar alguma reação.

            Assim, nesse revezamento, mais uma semana se passou. Os ferimentos físicos pareciam estar sarando. A cirurgia tinha sido bem realizada e tudo indicava que o fígado e pulmão atingidos seriam capazes de superar o ocorrido. A situação mais grave, do fígado, ainda gerava mais cuidados já que parte do órgão foi perdido.

            - Mas quando acordar, com o devido acompanhamento, ele terá plenas condições de uma vida normal. Fiquem tranquilas. – O médico repetia a cada relatório.

            O ‘acordar’ era a principal preocupação. Ao que parecia, uma grande mescla de fatores mantinham Diego adormecido. E esse quadro poderia prosseguir assim por muito tempo. Ou até mesmo jamais se alterar. Ao que a equipe médica dizia, Diego sofria com a fraqueza de uma intensa perda de sangue, além de ferimentos graves e um choque muito grande. Inicialmente, eles lhe deram medicamentos fortes para mantê-lo em coma forçado. Mas esses já haviam sido cortados há muito tempo. E ele não manifestara nenhuma mudança no quadro.

            - Ele parece ter se desliga do corpo. – Comentou uma enfermeira para então se calar diante das lágrimas de Ariella.

            Assistindo tudo de longe, Dulce e Murilo preocupavam-se muito com Diego. Mas, sobretudo, temiam por Ariella. Ela parecia dissolver-se à beira do leito do ex-marido. Naquele ritmo, quando ele acordasse Ariella estaria desfalecendo. Com Diego melhor ou não, ela teria de aprender a reerguer-se. Já tinha feito isso uma vez, por isso Dulce tinha fé que a amiga saberia tirar forças do próprio interior para não entregar-se a dor. Murilo tinha, ainda, preocupações profissionais que por mais desprezadas que fossem naquele momento, precisam do olhar de alguém. Diego construiu uma empresa de sucesso internacional e era o seu dever zelar para que nada perdesse seu valor enquanto o proprietário se recuperava. Com Diego hospitalizado e ele preso ao Brasil em função de seu estado de saúde, os hotéis começavam a ser deixados de lado.



            - Sinto muito, Dulce. Mas terei de fazer algo. – Avisou a esposa, sabendo que ela ficaria com Ariella. – Embarco amanhã para Europa e depois para Ásia. Visitarei todos nossos empreendimentos, passando tranquilidade para as equipes locais. Há um temor que hotéis serão vendidos e demissões ocorrerão caso Diego não saia do coma.
            - Ele vai sair! – Dulce respondeu.
            - Eu confio tanto quanto você. Mas minhas camareiras nem tanto. E os hospedes não podem ser afetados por esse clima de indecisão que paira sobre a empresa.
            - E os hotéis da América? – Ele falou apenas em Europa e Ásia, mas Dulce sabia que ao menos cinco países da América Latina e do Norte contam com empreendimentos da Rede de Diego.

            Essa era outra questão a ocupar o pensamento de Murilo nos últimos dias. Ele jamais conseguiria dar conta de tudo. E o terceiro na hierarquia da empresa não estava pronto para tal papel. Isso porque, segundo o que o próprio Diego sempre acreditou e praticou em seu negócio, em momentos de dificuldade, eram os proprietários do negócio que deveriam assumir a frente das decisões. E a Buenos Hotéis possuía três proprietários. Diego, com 80 % da empresa; ele que no decorrer do tempo comprou 5% e recebeu outros 5% de presente do fundador; e Ariella, a quem Diego fez questão de entregar 10% da empresa quando do divórcio.
            Ela não quis e jamais assinou a documentação para tal. Porém, Diego sempre manteve esse desejo firmemente divulgado entre a diretoria da empresa. Seu nome, de forma extra-oficial, aparecia em cada balanço fiscal. Havia uma conta milionária que guardava e investia lucros que Ariella jamais aceitou usar. A verdade, porém, é que se alguém tinha o direito de opinar e o dever de fazer algo pela empresa, esse alguém é Ariella. Ele explicou tudo isso a Dulce. E foi conversar com Ariella, que ouviu tudo surpreendendo-se e revoltando-se mais a cada ponto.



            - Diego perdeu o juízo que nunca teve. Só pode! – Exaltou-se. – Como eu posso ser dona de uma empresa que jamais conheci? Sou uma artista! Não entendo nada de hotelaria nem de administração.
            - Não exagere, Ariella. Você vem gerenciando uma carreira de sucesso. E isso é administração também. Além disso, Diego não cometeu crime nem loucura alguma. Ele apenas deseja que, caso algo de ruim lhe acontecesse, você ficasse amparada por toda a vida. Ele sempre soube que você tinha recursos vindos do seu trabalho...mas como marido – ele sempre se considerou assim – tinha responsabilidade por você.
            - Isso é loucura!
            - Pode ser. Mas é preciso que você saiba que... eu nem sei se Diego me permite te contar isso...
            - Agora fale de uma vez! – Ariella estava irritada demais para segredos.
            - É que...você precisa saber que se por acaso Diego vier a falecer, algo que todos desejamos evitar, mas se ocorrer...você é praticamente a herdeira universal da Rede Buenos. O testamento de Diego, e eu servi de testemunha, lhe dá 80 % de tudo o que ele tem. O restante é da avó. E, caso, dona Anita já tiver falecido quando do testamento entrar em vigor, você passa a receber 100%. Ou seja, Ariella, pode não querer se envolver na empresa agora, mas saiba que um dia ela será sua.

            Era informação demais para ser digerida por Ariella sozinha, sem aconselhamento e, ainda pior, num momento em que sua cabeça estava cheia de outras preocupações. Queria poder devotar-se apenas a cuidar de Diego, mas isso era impossível. Tinha inúmeras responsabilidades que não podiam esperar por ele acordar. Além das informações trazidas por Murilo, Dulce lembrou-a de algo que, na verdade, não havia esquecido. Tinha uma exposição marcada para ocorrer em Londres nas próximas semanas e não poderia deixar de lá estar. Depois, suas obras iriam para Paris e Milão, antes de voltarem à América e serem exibidas na Cidade do México. Tudo isso levaria cerca de 45 dias, com poucos dias de intervalo entre um país e outro. E com obrigações contratuais, largar tudo seria irresponsabilidade. Anita, percebendo seu desespero, foi aconselhá-la.

            - Faça o que seu coração mandar. Meu filho, quando acordar, ficará magoado se souber que lhe forçou a tomar qualquer atitude. Tudo o que ele sonhou foi tê-la por livre vontade e felicidade. – A velha senhora lhe afirmou.

            Depois de dois dias pensando, Ariella tornou-se mais serena e convicta de sua decisão. Chamou a todos os envolvidos e comunicou o que decidira.

            - Sou uma artista. E muitas pessoas esperam por minhas exposições. Equipes estão contratadas para trabalhar e não posso simplesmente cancelar. Irei cumprir meus contratos e cada intervalo, mesmo que de míseros dias, voltarei para ver Diego. Tenho certeza que ele compreenderá assim que acordar, o que não demorará. – Explicou em poucas palavras.
            - E quanto aos hotéis? – Murilo questionou. Pela resposta de Ariella havia adiado sua viagem e a situação na empresa exigia ações urgentes. – Já estamos há duas semanas sem nosso presidente.
            - Eu sinto muito, Murilo. Mas não me sinto capaz de ajudá-lo. Não estou interada dos negócios. O que posso é lhe dar total liberdade e apoio nas decisões. Somente você é capaz de representar Diego em suas decisões empresariais. Tenho certeza que essa é a resposta que ele esperaria de mim.
            - Se é o que prefere. Peço apenas que fique hospedada em nossos hotéis durante sua turnê, circule por eles e tente transmitir tranquilidade. Temos que passar a ideia de que tudo prossegue igual ao que era até que Diego reassuma a empresa.
            - Farei isso. – Ela aceitou.
           
            A despedida fora silenciosa e emocionante. Ficou alguns minutos conversando com Diego. Torceu para que ele abrisse os olhos e lhe pedisse para não viajar, para seguir ali, junto dele. E assim ela teria a desculpa perfeita para ficar aonde estava. Mas não aconteceu. E o relógio lhe disse que deveria ir para o aeroporto. Lá, a última pessoa a abraçar foi Dulce. E, como sempre, a amiga, lhe tinha algo especial a dizer.

            - Você, finalmente, deixou o passado para trás, minha amiga. Só agora eu vejo esse brilho sincero nos seus olhos.
            - Bobagem. – Ariella tentou não dar atenção. – O passado segue sempre com a gente. Pela vida toda.
            - Mas agora ele não mais te amarra. Você está mais viva, Ariella. Está determinada a ser feliz. Está até mais bonita...só falta...
            - Falta Diego acordar. – Ela sentiu-se mais leve após dizer em voz alta o que seu coração sussurrava há tantos anos. – Se ele acordar bem, seria feliz.
            - Ele acordará, tenho certeza. E vai gostar de vê-la bem, vê-la bonita. Está na hora de arrumar o seu cabelo, está com a raiz aparecendo.
            - Com isso tudo, não tive tempo de ir retocar a tintura.
            - Pois não devia retocar! – Dulce gritou. – Deveria pintar de ruivo e deixar o seu cabelo natural voltar. É essa Ariella, liberta, feliz e...e ensolarada que Diego deseja reencontrar.


            Foi com essa provocação no pensamento que Ariella chegou em Londres. No momento em que desembarcou, a primeira capital europeia a receber a sua mostra artística em anos tinha o céu nublado que lhe era habitual. Por dentro Ariella sentia-se em tempestade. Eram muitos sentimentos misturados, tantos que ela não sabia como se portar. A última frase de Dulce ainda lhe martelava a mente. E quando olhou-se no espelho percebeu que aquela Ariella de cabelos negros e olhar triste já não a representava. “Mi sol”. O apelido que Diego lhe dera, sempre esteve ali, escondido em seu peito. Agora desejava sair das sombras. Ela tomou coragem e pediu que a recepcionista do hotel lhe indicasse um salão de beleza. Dois dias depois, quando entrava triunfante na inauguração de sua exposição, exibia cabelos vermelhos e chamativos.



            De cabeça erguida, apresentou seu trabalho, recebeu a imprensa especializada e agradeceu aos elogios. Com tato, fugiu de perguntas pessoais e orientou aos assessores que afastassem aqueles que insistissem em lhe perguntar a respeito de Diego, sua situação de saúde ou qualquer questão que não fosse artística.
            Assim que a exposição saía de cartaz, enquanto tudo era montado em outro espaço, voltava ao Brasil. Não importava se ficaria muitos dias entre vôos longos para então passar pouquíssimo tempo junto de Diego. Pensava apenas que precisava ficar ao seu lado e incentivá-lo a abrir os olhos.

            - Estou aqui. Acorde, por favor. – Repetia sem parar.

            A cada vez que veio ao Brasil, porém, os amigos notavam uma maior fragilidade em sua aparência. Ariella estava se desgastando muito e isso começou a preocupar seriamente. Passava mal com certa frequência, tinha perdido peso, não comia e apresentava profundas olheiras sob os olhos. O que a maquiagem escondia nos eventos oficiais, aparecia a quem via a verdadeira Ariella.

            - O que você tem, minha querida? – Anita questionou em uma de suas rápidas vindas ao Brasil. – Faz mais de um mês que você não para de viajar, está magra demais, com aparência adoentada.
            - Estou me sentindo mal. Acho que estou com a imunidade baixa e uma gripe não quer me largar. Não paro de vomitar. Mas ficarei bem. Logo as exposições terminam, Diego há de acordar bem. E tudo voltará ao normal.

            É nisso que ela confiava. Por isso levantava-se da cama a cada manhã, por mais difícil que fosse, ligava para o hospital da onde estivesse apenas para saber de uma mínima melhora de Diego e então fazia suas orações por uma melhora. Quando completou dois meses de internação hospitalar, fraquejou. O desânimo tomou conta de seu coração. E o corpo sofreu ainda mais. No México sofreu um desmaio. E o médico local a indicou mais repouso, além de pedir alguns exames. Exames que ela optou por não fazer.

            - Estou preocupada com você, Ariella! – Dulce lhe disse ao recebê-la de volta, no hospital do Rio de Janeiro.
            - Assim que Diego melhorar eu me recuperarei.



            Ariella então não mais viajou e voltou a dedicar seus dias e noites a ficar junto do “namorado”. Era assim que resolvera denominar a relação deles, mesmo sem muita convicção. Quando ele acordasse poderiam resolver definitivamente o que eram um do outro. Curiosamente, quando ele – finalmente - começava a dar sinais de que abriria os olhos, movimentando as mãos no leito e apresentando um batimento cardíaco mais intenso, ela parecia ter a saúde ainda mais debilidade.

            - Basta! – Dulce disse. – Você vai a um médico! Está num hospital, droga! É só consultar e ver o que tem.
            - Não estou doente! E não irei a lugar algum. – Ariella respondeu.
            - Eu também acho que não está doente. E já esperava a resposta. Por isso trouxe um teste que você pode realizar aqui mesmo no banheiro!

            Ariella demorou a entender a que Dulce se referia. Mas, quando leu a embalagem que ela lhe estendia, um ponta de esperança cresceu em seu peito. Grávida. Dulce desconfiava que ela estava grávida. E se voltasse no tempo e lembrasse dos acontecimentos frenéticos de oito semanas atrás, essa possibilidade parecia bem real.


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