sábado, 2 de julho de 2016

Ariella: capítulo 16



Aquele jeito serelepe de falar, aquela provocação no olhar e a coragem de agir combinavam tanto com Ariella que Diego olhou-a e não conseguiu deixar de sorrir. Essa mulher, forte, segura e provocadora em quase nada lembrava a menina temerosa e afoita com quem se casou mais de uma década atrás. Ainda assim, aquela jovem ali estava, talvez um tanto escondida, porém presente, na essência de Ariella.

- Hoje é carnaval! Nada melhor que beber. – Ela lhe disse um tanto trôpega e estendendo a garrafa de bebida. - Quer um pouco?
- Você é argentina, Ariella. Esqueceu? – Portanto, o samba e tudo o que envolvia aquela festa não deveriam lhe importar tanto.
- Não. Mas... mas você também não é daqui e está na minha frente. Veio como turista? – Ela deu alguns passos e Diego percebeu o quão instáveis eram. Não soube se a falta de equilíbrio estava ligada ao problema na perna ou com o excesso de bebida alcoólica.

Nem mesmo todos os anos que se passaram foram capazes de apagar aquela marca em sua consciência. Talvez tivesse conseguido se perdoar caso Ariella houvesse se recuperado completamente. Não foi assim. Discretamente, ele acompanhou sua melhora no decorrer dos anos, suas idas a ortopedistas, as diferentes técnicas de fisioterapia e a frustrante confirmação de que, apesar da evolução, ela jamais seria a mesma.



- Não é bem turismo. Vim ver você. – Jamais existira resposta mais sincera. E ele permitiu-se sorrir olhando-a.

Diego teria continuado ali por horas, observando-a livre dos temores do passado e podendo enfim vê-la sorrir. Preferia ignorar que ela lhe sorria apenas por estar bêbada e, ainda por cima, acreditar que ele não passava de um fantasma ou era fruto de sua imaginação. Apenas não seguiu aproveitando-se daquele momento único porque ouviu um barulho e teve a sensação de ver algum movimento na praia na praia deserta. Resolveu então que era hora de colocar fim na conversa. Desconfiava de que poderiam estar sendo observados à distância, mas não temeu. Se alguém realmente tentava lhe fazer mal, não contava com a sua presença e isso já serviria para afastar o perigo. Mesmo assim, precisavam entrar. Ele desejava ter uma conversa particular com Ariella, após lhe oferecer uma xícara de café amargo para alertar seus sentidos. Depois que ela conseguisse falar sem enrolar a língua, encontraria um meio de convencê-la a cuidar melhor da própria segurança.
Mesmo assim, ele reconhecia que Ariella estava linda naquele clima de festa no Brasil. Mesmo que ela lembrasse uma menina pulando carnaval, não a mulher que já era. Uma mulher muito inconsequente...ou muito infeliz. Talvez isso explicasse a bebida. Ele também ficara muito próximo do álcool durante aqueles anos. Ariella devia ter virado aquela garrafa de champanhe no intuito de desligar-se completamente dos problemas e não mais pensar na vida. Assim como ele fez tantas vezes depois que ela foi embora.

-Chega de farra! Vamos entrar. – Disse antes de dar chance a quem os estivesse observado.
- E quem disse que eu vou deixar você entrar na minha casa?
- A não vai, é? – Sem pensar duas vezes, Diego deu dois passos em sua direção, pegou Ariella no colo e carregou até a casa, seguindo pela areia fofa por muitos metros – Mal consegue caminhar.

Já que conversar estava fora de questão enquanto ela estivesse totalmente acordada, Diego resolveu que um banho era a melhor opção. Uma breve olhada pela casa o agradou. Sua esposa vivia com segurança mínima, mas conseguia a paz que ele não tinha. Agora que estava por perto, tinha certeza de que ninguém tentaria um assalto ou sequestro durante a madrugada e depois que conversassem na manhã seguinte, e ela entendesse que se tornara alvo de bandidos, ele poderia dizer adeus. Era isso dizia a si mesmo.
Não veio ao Brasil esperando despir, banhar, vestir e colocar para dormir sua jovem e linda esposa. Mas não se importou em fazê-lo, ainda mais porque quando subia as escadas procurando pelo quarto, ela já dava sinais de se entregar ao sono criado pela bebida. Deu-lhe banho da forma mais objetiva possível, tentando não olhar excessivamente para o corpo dela. Falhou na tentativa. E perdoou a si mesmo afirmando que ela foi, e de várias formas ainda era, a sua mulher. Entristeceu-se ao olhar as cicatrizes que marcavam principalmente uma de suas pernas. Quando concluiu a tarefa, seu sangue borbulhava. Ariella havia se enroscado a ele sem nenhum pudor. Durante o banho, perdida em devaneios, o puxava para debaixo do chuveiro, fazendo com que em poucos minutos ele estivesse ensopado. Após estar vestida, ela adormeceu e ele ficou observando. Parecia um anjo, mas a marca em seu pescoço dizia que Ariella podia ser perigosa. Para se distrair ele ligou a televisão, mas a transmissão dos desfiles carnavalescos o perturbava ainda mais. Depois de ver a esposa, assistir a lindas mulheres dançarem quase nuas e de forma sensual não ajudava.



Ariella despertou com a cabeça confusa. Havia tido um sonho estranho no qual Diego estava com ela, primeiro na praia, depois debaixo do chuveiro. Ela sorriu, reconhecendo ter bebido a ponto de ser atormentada em sonho pelo ex. Assustou-se quando entendeu que não foram os fracos raios de sol do amanhecer a acordá-la e sim muitos gritos. Eles vinham da poltrona antiga que decorava o canto esquerdo de seu quarto. E mesmo após tanto tempo separados, ela reconheceu aquela voz. Não fora um sonho. Diego estava ali, em seu quarto, e, aparentemente, tendo um pesadelo muito ruim.

- Diego...acorde. Diego.... – Lhe disse, sem muito saber o que falar quando ele estivesse consciente. Até que começou a se lembrar dos dois na praia...e depois do banho. Não fora sonho. Procurou na mente por alguma lembrança mais íntima e nada veio, tranquilizando-a. – Diego!
- O que? Sim...eu... Ariella. Você está bem? Alguém invadiu a casa? – Ele acordou para lá de confuso.
- É claro que não há ninguém invadindo minha casa, Diego. Além de você! Quer me explicar o que faz aqui no meu quarto? O que faz no Brasil em pleno Carnaval? Nós tínhamos um acordo! Você prometeu ficar longe de mim! E que pesadelo foi esse?!?
- Esqueça o pesadelo. Ele sempre acontece, desde que eu era criança. Não é nada demais. – Sonhava com o pai quebrando tudo que havia dentro de casa no dia em que a mãe fugiu e morreu.
- Você não os tinha quando estávamos casados.
- Porque aqueles tempos foram diferentes, Ariella. Apenas isso. Depois do seu acidente eles voltaram ainda mais fortes. – Diego explicou.

            Ariella ficou constrangida com aquela revelação, cobriu-se com um roupão, sem querer pensar nos momentos em que esteve nua nos braços de Diego. Então decidiu que era preciso esfriar a cabeça antes de conversar com o ex. Ela saía pelo quarto sentindo os músculos da perna doerem e repuxarem a cada passo. E então viu Diego erguer-se da poltrona e segurá-la pelo braço.

            - Me larga, Diego. Se arrume e vá embora. Não sei por que veio ao Brasil, mas não ficará em minha casa. – Ela disse claramente.
            - Algum dia você irá conseguir me perdoar? – A pergunta nada tinha a ver com ele ter invadido sua casa. Era a respeito de dívidas muito mais antigas.

            A pergunta ficou sem resposta. Ariella soltou-se do braço dele e deixou o quarto, atravessando a grande casa e descendo as escadas até chegar à cozinha e colocar água para ferver. Ela fez uma xícara de chá e por lá ficou, bebendo sem pressa. Poderia ter feito café, mas o relógio marcava apenas 6h da manhã e ainda queria dormir um pouco mais. Quando Diego veio procurá-la, ela avisou que não desejava discutir.

            - Eu estou com dor de cabeça e tomei remédio. Não quero falar agora, Diego.
            - Precisamos conversar, agora ou depois. – Ele lembrou, cheio de paciência.
            - Que seja depois, então. Vou ficar aqui pela sala mesmo...vá pra cama, Diego. Descanse e tente dormir sem pesadelos. Depois você vai embora e pega o primeiro voo pra Espanha, da onde não deveria ter saído.

            Dormir na cama dela, sentindo o cheiro de seus cabelos? Não. Diego não conseguiria. Mas resolveu que deveria dar-lhe aquele tempo, afinal, estavam separados há mais de uma década, após um acontecimento muito traumático. Ele saiu da casa e foi olhar o mar naquele amanhecer. As ondas estavam revoltas, o mar bravo, o céu limpo. A areia branca parecia livre de pessoas e ainda estava gelada para pisar descalço, mas logo seria aquecida pelo sol. Seria um belo dia e ele esperava que aquele clima ajudasse a amolecer o coração de Ariella. Tirou a camisa e resolveu nadar para acordar.

            - Onde pensa que vai! O mar não está quente! – Ariella gritou quando ele dava os primeiros passos. Estava observando-o pela janela - Se não iremos dormir mesmo, venha tomar café antes de ir embora, Diego.
            - Eu não vou embora, Ariella. – Ele respondeu. Mas continuou sorrindo. – Ainda assim, o café eu aceito. Depois de um mergulho.

            Ariella assistiu Diego correr em direção ao mar e logo dar braçadas fortes em direção ao alto mar. Pegou-se admirada pela beleza dele. Não só com os braços fortes, ou os traços perfeitos do rosto agora coberto por uma barba grossa. Ele envelheceu 10 anos e, estranhamente, Ariella percebia que o menino de rosto perfeito agora era é um homem ganhara uma beleza mais dura, mais amarga, mas, ainda assim, bonita.
            Ela deveria ter entrado, fugido daquela visão. Mas não conseguiu. Passou a meia hora seguinte observando suas braçadas e dizendo a si mesma que apenas desejava ter certeza de que Diego não estava se afogando. Ele não conhecia aquele mar, nem aquela praia. Podia ser arriscado. Os minutos foram passando até que Diego enfim deixou a água.




            Após se secar, Diego enfim encontrou uma mesa de café da manhã tipicamente posta. Ariella estava sentada, com uma xícara fumegante à frente e uma fatia de bolo intocada no prato. Ambos sabiam que era hora de terem uma conversa séria, sem mais fugas ou meias verdades.

            - Vejo que está sem apetite. É enjôo? Acontece com quem bebe demais. Tome um remédio repouse bastante hoje.
- Depois que você desaparecer! – Ariella respondeu, num tom desnecessariamente agudo. Estava irritada por não controlar aquela situação.
- Pare com isso Ariella. Pelas minhas contas você já está com 29 anos e não mais pode se dar ao luxo de se comportar como adolescente mimada e teimosa.
- O que quer? – Mimada e teimosa? Ele tinha essa ousadia.
- Precisamos conversar, mas antes você tem de comer.

Ariella demorou muito tempo para comer sob o olhar dele. Estranhamente, sentia-se voltando no tempo e sendo novamente aquela menina inexperiente. Estava vestida com um leve vestido de verão e sem nenhuma maquiagem no rosto, algo raro atualmente, mas muito comum quando tinha 18 anos. Continuava sem entender o que fez Diego aparecer em sua casa em uma madrugada de carnaval e sem acreditar que ali estavam eles, tomando café da manhã juntos como se não houvessem se divorciado há uma década, após uma séria negociação com advogados
Diego estava ansioso para falar com a esposa e sem saber o que diria a ela. A única certeza era que não iria embora. Surpreendeu-se quando a encontrou vestida de forma simples e aparentando serenidade. Aquela realmente era uma mulher desconhecia a ele, mais forte e menos manipulável que no passado. Hoje não tinha nenhuma chance de enganar Ariella, precisaria se esforçar para convencê-la fazendo uso apenas da verdade.

- Satisfeita? – Ele perguntou ao vê-la engolir o último pedaço de bolo.
- Sim. – Ela tinha que se manter fria, pensava. – Acho que você já pode dizer o que o fez atravessar o oceano, e depois ir embora.
- Posso, mas não vou.
- Por quê? – Era isso que ela temia.
- Sabe quanto tempo faz que não nos víamos? Essa semana completam 11 anos, Ariella.
- Eu sei exatamente que dia é. – O nervosismo começava a lhe fazer perder a paciência. – Não precisava vir até aqui comemorar o nosso aniversário de divórcio. Eu fiz uma tremenda besteira ao deixá-lo passar a noite aqui. Mas já me arrependi. Vá embora.
- Não vou! Você fez sim muita besteira, mas não foi por eu estar na sua casa. Como pode sair bêbada na beira de uma praia completamente vazia? Porque dispensou seus empregados? Não há segurança alguma aqui!
- Você não tem nada a ver com isso! – Ela estranhou os comentários. – E como sabe que dispensei os empregados? Esteve me vigiando?
- Vigiar não é a palavra certa. Eu não quero que corra perigo e não vou embora enquanto não tiver outras pessoas aqui.
- Eles só vão voltar na quinta feira. – Ela pegou explicando, para logo depois se arrepender.
- Isso é daqui cinco dias! – Diego irritou-se ainda mais. - Ia ficar sozinha todo este tempo?
- Sim. Eles gostam da festa e não ia privá-los. Além disso, se resolvi beber não é da sua conta.
- Será que não vê o quanto o Brasil é perigoso? Por Dios! Há assaltantes, sequestradores e golpistas aos montes no Rio de Janeiro!
- A Espanha foi muito menos acolhedora para mim. Aqui eu sou feliz. – A frase, apesar de verdadeira, tinha como objetivo apenas ferir Diego.
- Eu já pedi perdão por isso.
-E eu já pedi que fosse embora. – Perdão era algo que jamais poderia oferecer aquele homem. Poderia deixar para trás e até mesmo sentir o desejo ressurgir ao vê-lo. Mas perdoar era impossível, ele lhe deixou marcas demais. – A cada passo que eu dou, lembro do mal que me fez.

Diego já não sabia que atitude tomar. Se falasse que desejava tentar novamente a união com ela, seria expulso. Se falasse da suposta tentativa de sequestro, Ariella não acreditaria. Ele não podia ir embora e deixaria isso claro.

- Você está ficando conhecida no país por sua arte. É sabido de todos que é uma mulher riquíssima e pode ser alvo de gente criminosa. – Havia sensatez no que afirmava e ele esperava que Ariella visse isso.
- Eu cuido disso!
- Não vou embora enquanto não chegarem seus empregados. Sozinha você não fica. – Se ela era teimosa o bastante para brincar com a segurança, ele também seria para mantê-la bem. - Você vai ser sequestrada. Quer repetir a experiência? – Ele se referia ao episódio de sua pré-adolescência e a viu empalidecer.
- Da onde tirou esta ideia? Não minta para assustar-me.
- Não é mentira. Minha equipe de segurança descobriu que você contratou uma nova doméstica que tem ligação com criminosos. Ela está dando informações a eles e está sendo montado um plano.
- E esta informação chegou à Espanha como?
- Não seja ingênua Ariella. Eu nunca deixei de saber o que se passava próximo de você. Sua segurança sempre foi controlada por mim. Sei todas as viagens que fez, cada quadro que pintou e estive presente, mesmo que de longe, em todas as suas exposições.
- Esteve fazendo espionagem? – Ela estava chocada com a revelação. Jamais desconfiou de nada.
- Não seja trágica. Tudo o que fiz foi cuidar de você. Não quero que nada de ruim lhe aconteça. Acredite ou não, você é alvo em uma tentativa de sequestro. Mas fique tranquila, não permitirei que nada ruim lhe aconteça. – Diego veio se aproximando, falando mais baixo e tornando aquela declaração ainda mais íntima.




Quando ele, enfim, tomou a iniciativa de beijá-la, nenhum dos dois se surpreendeu. O contato físico era desejado por ambos, que preferiam não entender aquele sentimento. Ariella se deixou levar pela vontade de senti-lo novamente. No íntimo, porém, reconhecia naquela situação um completo absurdo. Diego, o responsável do maior sofrimento de sua vida, falando em protegê-la. Ele, que certa vez usou de qualquer arma imoral para levá-la e mantê-la à força em outro país, agora falava em protegê-la de um sequestro. Por enquanto, porém, preferia aproveitar-se daquele carinho que, pela falta, há 11 anos seu corpo ressentia-se.

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