sábado, 29 de agosto de 2015

Vida Roubada - Capítulo 3



            Quando alcançou o salão, como todos pareciam se referir à boate, Beatriz não se sentiu surpresa. Era exatamente como seus entrevistados haviam narrado. Um lugar escuro e onde o que valia era a negociação. Um comércio de humanos. Compra e venda de prazer. A sensualidade dos corpos seminus dançando sobre balcões, servindo as mesas ou esfregando-se nos clientes sentados bebendo em mesas redondas não disfarçava a infelicidade delas. Os clientes podiam ignorar por lhe ser mais agradável. Mas era óbvio, estava nos olhos delas, que não desejavam estar ali.
            A primeira coisa que chamou sua atenção foram os mastros dourados. Eram o único ponto bem iluminado do salão naquele momento e atraiam os olhares dos clientes que chegaram cedo. Maya, a bela e exuberante loira de cabelos fartos e olhos fortes que lhe disseram ser australiana, dançava abraçada a um deles. Ela enroscava braços e pernas, subia e descia num ritmo sensual. Alguns homens mais afoitos se aproximam para tocá-la e são delicadamente impedidos. Ela os atrai e repele no mesmo movimento.



            - Me quer? – Pergunta para um mais insistente. – Sabe o que tem de fazer para eu ser só sua por algumas horas.

            Tentando entender a mecânica daquele comércio, Beatriz viu o homem aproximar-se de uma mesa onde Samantha, Gregory e outros dois homens estavam sentados. O interessado apontou para Maya e abriu a carteira. Depois de estender algumas notas pegou uma chave oferecida por Samantha e veio retirar Maya do palco. Ganhou dela um beijo eufórico. Ela realmente parecia gostar dele. Maya sabia fingir bem.

            - Maya teve sorte. Conseguiu um cliente cedo. – Natacha disse aproximando-se às suas costas. – Acho bom você circular, servir algumas mesas, mostrar serviço. Gregory vai se irritar se você ficar plantada aí a noite inteira.
            - Ela vai passar a noite toda com ele?
            - Não sei por quantas horas ele pagou. Mas dificilmente. Ele usa aliança e ta arrumadinho. A esposa deve achar que está numa reunião de negócios. Vai querer chegar cedo em casa.

            Ali as garotas dividiam os homens em alguns perfis. O pego por Maya era um dos melhores. O cliente comprometido. Não queria muito além do que variar. Não exigia nada de mais e ia embora logo depois de se satisfazer. Mas com um problema. Esse tipo de homem bebe pouco e a boate fatura muito com as doses vendidas. Samantha insistia que todas as garotas precisavam estimular a consumação. E isso ia além de seus corpos.
            Outro perfil eram os dos muito jovens. Meninos com pouco mais de 18 anos. Eles não precisavam de prostitutas, mas gostavam. E em grupo. Para se exibir. Meia dúzia de amigos pegavam duas ou três garotas e levavam para um quarto. Era arriscado e todas ali sabiam. Esses costumavam beber muito, mas o perigo era tanto que nem mesmo Gregory gostava. Se matassem uma menina o prejuízo era alto. Mas não se negava porque esses jovens, no geral, eram filhos de antigos clientes, empresários de peso na Rússia e indispor-se com eles era péssima ideia.
            O outro perfil era oposto desses meninos. Serviam para seus avôs. E costumavam ser motivo de dinheiro sem muito esforço. Eles ‘mais bebem do que comem’, dizia a piada interna. Não era bem assim, é claro que havia alguns bem fortes apesar da idade. Todos com muita grana e viúvos, no geral eles vinham buscando a atenção de uma mulher. Alguns eram tão delicados que elas conseguiam superar o nojo de tocar tão intimamente alguém com idade para ser seu avô.
            E existia o workaholic. Caras com mais dinheiro do que laços afetivos. Não que eles se importem. O sonho de muitas delas era se tornar a exclusiva de um desses. Quase impossível. Afinal, eles procuram mulher em boates justamente para não precisar mimar uma namorada. Preferiam pagar para não ter de ligar no dia seguinte. Eram adorados por Samantha. Isso porque não importava quanto bebessem, pagavam muito bem. Apenas exigiam discrição. Podiam não precisar se esconder de uma esposa ciumenta, mas muitos costumavam estampar as páginas de economia dos jornais.

            - Isso é bom, não é? Se ele quer chegar cedo Maya logo retornará ao alojamento. – Beatriz ainda observava Maya subindo as escadas junto de seu acompanhante.
            - Você é tão engraçada Bia! – Natacha riu. – Ele vai embora cedo e Maya volta para tentar pegar mais um. E esse já estará com menos dinheiro no bolso e mais álcool no corpo. Então ela terá de ficar ligada.
            - Pega...mais de um.. – Talvez as entrevistas não a tivessem preparado tão bem assim para aquela realidade.
            - Pega quantos conseguir. Entenda uma coisa, Beatriz. Aqui eles te cobram o ar que respira. Se você não der lucro, te metem numa cova qualquer. Agora, se me der licença, vou achar um cliente. Aconselho você a fazer igual.

            Achar um cliente. O conselho de Natacha teve o efeito de jogá-la de volta à realidade. Humilhante realidade da qual ela não podia fugir. Tornou a olhar na direção da mesa de Gregory. Ele lhe fez um sinal para ir até o bar e logo entendeu que um meio de se aproximar dos clientes era servindo as mesas. Era isso ou dançar. Preferiu pegar uma bandeja.

            - Isso é fim de carreira, novata. – Disse um garoto que preparava drinks do outro lado do balcão.
            - O que? – Pelo português arrastado notava-se que não era brasileiro. Mas dava para entender o que falava.
            - Esse seu corpinho lindo não foi trazido aqui para servir as mesas, meu bem. Gregory não vai gostar dessa sua ideia.
            - É...só que não sei bem como fazer para agradá-lo. – Nem queria. Mas entendia que prostituir-se era sua única alternativa se quisesse se manter viva. Fazê-los crer que tinha aceitado seu destino para então escapar. – Qual seu nome?
            - Jean. Vou te ajudar. Mas é só hoje. Não se acostume.

            Jean pegou dois copos e colocou gelo e limão num deles. Depois completou com uma bebida de cheiro forte. Ela não reconheceu. Deveria ser algo muito apreciado ali. Havia muitas garrafas daquilo.

            - Leve para última mesa à sua esquerda. Lá tem dois homens de meia idade. Um deles deve se interessar por você. Não é do tipo que curte garotinhas angelicais. Trate-o bem por mim, ok?

            Beatriz seguiu o conselho e aproximou-se dos homens. Falavam, mas suas vozes eram abafadas pelo barulho da boate. E só perceberam sua aproximação quando estava junto da mesa, estendendo as bebidas.

            - Aqui está, senhores. – O que deveria dizer numa situação daquelas?
            - Кто ты? – Um deles respondeu.
            - O que? Eu não entendo. – Bia respondeu tentando imaginar se aquilo era russo.
            - Кто ты? – Ele repetiu um grunhido que aos ouvidos dela não significou nada. Enquanto esperava uma resposta observou-a. Então tomou um gole da bebida de cheiro ruim e aproximou seu rosto dela. De alguma forma ela soube que a próxima fala daquele homem era uma ordem para esperar por ele. - Это не имеет значения. Бонита. Жди здесь.
            Quando ele se afastou e foi até Samantha pegar a chave e pagar, Beatriz já sabia que ali não estavam sendo colocados apenas o custo da bebida. Ela era a mercadoria principal. E teria de fazer valer aquele dinheiro.
            O homem que ela não fazia ideia de como se chamava tinha um palmo a mais que sua altura, cabelos grisalhos e barba grossa. Seu hábito estava quente pela bebida em quanto retornou carregando uma chave nada mais lhe disse. Provavelmente foi avisado de que não falava sua língua. Antes de tocá-la ele virou o restante do copo e engoliu rapidamente. Não fazia ideia do quem ela era, do drama que vivia. Talvez pensasse se tratar de uma vadia, não uma escrava. Talvez soubesse de tudo e apenas não se importasse.
            Ela usava uma saia curta junto de um espartilho que apertava sua cintura e forçava seus seios a ficarem empinados e cheios. No rosto a maquiagem forte tornava-a outra mulher e escondia o pânico que viveu quando aquele homem colocou a mão por debaixo de sua saia e tocou a minúscula calcinha fio dental que usava. Ele sorria, satisfeito em tê-la comprado. O grito ficou preso em sua garganta, queria empurrá-lo para longe, gritar que não faria nada.
            Jean aproximou-se deles e lhe entregou uma garrafa de bebida enquanto o cliente ainda lhe alisava e apalpava à frente de todos. Não veio apenas trazer a bebida. E Beatriz sabia.

            - Gregory quer lembrá-la que quando o Yerik descer deverá estar satisfeito com você. Se não quiser que ele mesmo a ensine a trabalhar aqui. Se aceita um conselho pessoal, esqueça de tudo e pense nisso como um trabalho. Vá lá, faça e depois esqueça.

            Ao menos ela soube que o homem se chama Yerik. Quase riu do conselho de Jean. E tinha alguma alternativa? Já sabia que teria de transar com ele. Faria isso. Esquecer seria mais difícil. Como esquecer o toque de alguém que não conhecia e não desejava? Impossível. Aquilo ficaria em suas lembranças para sempre.
            Yerik puxou-a pelo braço e a fez subir uma escadaria. Logo estavam dentro de um quarto limpo e bem decorado. Não parecia em nada com as dependências onde as garotas dormiam. Era quase com um quarto de hotel fino.
            Não houve carícia, nem afago. Yerik tirou as próprias roupas rapidamente e fez um sinal para que ela fizesse o mesmo e fosse para a cama. Quando sentiu suas mãos tocarem a pele nua entendeu o que antigas garotas de programa falavam ao lhe afirmar nas entrevistas que era diferente, não comparável com nenhum relacionamento. Dali não surgiam relacionamentos porque não havia sentimento. Ele estava pagando pelo alívio. Apenas isso. Poderia ser qualquer uma.
            Deixou-se ter todo o corpo usado naquela satisfação, mas não conseguiu esquecer quem era. Não pode imaginar-se com um homem agradável. Era impossível. Assistiu-o se excitar diante de seu corpo enquanto ela seguia fria, sem desejo ou prazer algum. E tinha consciência de que precisava disfarçar aquilo ou teria problemas. Segurando-a pelos cabelos, Yerik apontou para o chão e a bile subiu por sua garganta enquanto foi obrigada a acariciá-lo ajoelhada à sua frente. Não poderia haver nada tão humilhante.



            Quando a puxou de volta do chão foi apenas para afundar-se nela e como um touro bravo e egoísta desfalecer sobre ela alguns instantes depois. A bebida fez efeito. E logo ele mais parecia um doente em coma. Ela ficou ali, olhando para o próprio corpo e para o que havia se transformado. Alguém de quem não se orgulhava.
            Pela primeira vez desde que foi sequestrada Beatriz se questionou se valeria o sacrifício apenas para se manter viva. Talvez fosse mais fácil aceitar a morte e manter alguma dignidade. Então sua consciência lembrou-a de Eva. Prostituta ou não, escrava ou não, infeliz, decepcionada, humilhada, nada disso era motivo o bastante para fazê-la desistir de um dia rever Eva.
            Aproveitou-se do sono de Yerik ergueu-se da cama ignorando as dores deixadas por ele em seu corpo. Se os homens que procuravam mulheres ali era assim tão discretos e exigentes quanto às garotas e Gregory falaram, aquele seria um dos poucos momentos em que não teria vigilância, seja por guardas ou câmeras. Não havia janela e um ar condicionado mantinha a temperatura agradável. Por ali não conseguiria escapar. Havia um pequeno banheiro junto do quarto e nele, junto do teto, uma janela. Mas essa era tão estreita que mesmo se não tivesse grade, seria impossível sair.

            - Não. Por aqui é impossível. – Disse e forçou sua mente a se manter controlada. Teria de encontrar outra forma.


            Em São Paulo, Patrícia não conseguia se satisfazer apenas ajudando Elizabeth e Matheus nos cuidados com Eva. Ao contrário deles, sabia exatamente pelo que Bia passava. Se fechasse os olhos podia visualizar, voltar aquele tempo de sofrimento e humilhação. E não podia permitir que ela se tornasse aquilo sem tentar ajudar. Não sem ao menos tentar fazer alguma coisa. Por isso ela procurou Liz sem Matt saber.

            - Estou disposta a ajudar. Com o que precisar. – Avisou a amiga.
            - O que está me oferecendo, Paty?
            - Qualquer coisa. Eu sei que você desconfia que é na Rússia que eles agem. Posso ir para lá. Tentar procurar por Nicolay. Faço qualquer coisa para poder ajudar Bia. Aquilo não é vida para ninguém.
            - Eu acho bonita a sua demonstração de lealdade e amizade por Beatriz, Patrícia. – Elizabeth estava em sua sala na Polícia Federal, cheia de casos para resolver e sem conseguir se concentrar em nada além de Bia. – Mas a menos que tenha mentido em seus depoimentos, passou não mais do que algumas horas na Rússia.
            - Sim, é verdade. Eu apenas troquei de voo lá. Trabalhava na Grécia. Mas a base dos negócios de Nicolay é na Rússia.
            - Você não fala russo, Patrícia e, por mais duro que seja afirmar, não posso garantir que Bia está na Rússia. O meu instinto diz isso, mas não posso provar. Não posso nem mesmo afirmar que está viva.
            - Você sabe que está! Estão escravizando ela. Como fizeram comigo!
            - É no que eu acredito. Mas não posso colocar você em risco sem um indício mais concreto. – Irritada ela se levantou da cadeira e passou a caminhar pela sala. – Nem posso investigar sem estar cometendo uma infração.
            - Mas você não vai desistir, não é?
            - É claro que não. Fique tranquila, Paty. Eu vou encontrar um meio. Não vou parar. E vou precisar de você. Por enquanto, vá para sua casa e cuide de Eva ao lado de Matt. Meu amigo deve estar preocupado também.
            - Muito, desde que Bia sumiu ele não dorme bem.
            - Eu sei como é. Há uma semana eu também não durmo nem como direito. Só penso em Beatriz.
            - Mas tome cuidado. Você tem esse bebezinho aí para zelar.

            Sim, ela tinha aquele bebê. Devia ser culpa dele aquela sensação de enjôo permanente e um cansaço que parecia acompanhá-la dia a dia. Nunca foi tão sonolenta. E jamais cuidou da alimentação, mesmo sendo diabética. Sempre comeu qualquer coisa que a mantivesse de pé. Agora via as olheiras se aprofundarem em seus olhos, sentindo fome e não conseguindo comer e sem dormir bem apesar do cansaço. Foi para casa preocupada. Encontrou um apartamento vazio. Preparou uma xícara de chá e seguiu trabalhando num silêncio absoluto. Estava revisando as anotações de Bia para suas matérias, o notebook da irmã estava em seu colo e ela conferindo cada arquivo. Não podia desistir. Seria mais uma longa madrugada de trabalho.
            Miguel também estava acordado apesar do avançado da hora. Todos lhe diziam que ele não podia mais se dar ao luxo de entregar-se para o álcool. Agora não mais era um profissional liberal que respondia apenas por si. Havia uma corporação inteira a qual suas decisões mantinham os empregos. Então em todas as manhãs ele se levantava, fazia a barba e ia para a BTez. Isso não o impedia de passar madrugadas remoendo-se em arrependimentos.



            - Miguel, meu filho. Você tem de tocar a vida em frente. – Rúbia entrou no quarto do filho ao ver que ele seguia iluminado. – Eu não aguento mais te ver assim.

            Rúbia sofria vendo Miguel desabar com o fim do casamento. Jamais diria para ninguém, mas chegava a se arrepender de ter ido contra aquela união. Ao menos seu filho estava feliz e não entregando-se ao álcool e ao sofrimento. Ele apenas lhe encarou, nem mesmo mandou-a deixar o quarto como costumava fazer sempre que ela vinha conversar.



            - Não pode se entregar assim, meu filho. Reaja. Agora você tem um filho a caminho. Ele pode lhe dar tantas alegrias. Deixe Elizabeth no passado e retome o caminho da sua vida. – Orientou.
            - Desista mãe. – Miguel disse e, para surpresa de Rúbia, sua voz era tranquila, quase serena. Apesar da garrafa de bebida ao seu lado, Miguel não estava alcoolizado. – Elizabeth não será esquecida. Ao contrário, encontrarei um meio de trazê-la de volta, de reconquistar sua confiança. Só assim eu serei feliz novamente.
            - E Alejandra? E seu filho?
            - Não quero saber de Alejandra. Ela desceu muito baixo para forçar uma reconciliação que não existe. Jamais voltarei para Alejandra. Agora não a quero nem mesmo para amiga.
            - Mi nieto não tem culpa disso. É seu filho, Miguel.
            - Eu sinto pena dele. Não merecia nascer dessa forma. Mas não vou me casar com Alejandra. Quando nascer eu o registro e lhe darei uma generosa pensão. Mas é só.
            - Mi hijo. – Rúbia acariciou os cabelos do filho. – Não faça assim. Um dia olhará para trás e veja que Elizabeth não é tão importante. Importante é o seu filho, seu sangue está nas veias dele. Isso é algo a que sempre o ligará com Alejandra. Algo santo, um amor eterno. E que Elizabeth nunca esteve disposta a lhe dar.
            - Me deixe sozinho, mamãe. Por favor. Pode levar a garrafa. Eu não vou mais beber.

            Rúbia encarou aquilo como um bom sinal. Seu filho parecia estar reagindo. Logo iria despertar para a paternidade e buscaria um acordo com Ale. Um acordo que os reaproximaria. E talvez então ele encontrasse a felicidade novamente, agora formando a sua família junto de uma mulher digna e a quem sempre apoiou.
            Ela estava muito enganada. Miguel havia sim decidido não se entregar à bebida. Mas não por começar a esquecer Liz nem por decidir aproximar-se de Alejandra. Isso não aconteceria jamais. Porém, beber não lhe traria Liz de volta. E sóbrio conseguia pensar com mais clareza em como reconquistá-la.

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