segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Vida Roubada - Capítulo 1



A temperatura é fria. A luz fraca. O cheiro tem uma mistura de perfumes desagradáveis com bebidas alcoólicas. Beatriz não sabia exatamente onde estava, mas entendia que precisava encontrar um meio de escapar. Tudo eram vultos, desconhecidos gritando e empurrando-a em alguma direção para a qual não deseja ir e forçando-a a engolir algo que a fez ficar ainda mais desligada do mundo. Dormiu provavelmente. Não conseguia se lembrar ao certo. Estava acordada, mas sem controle do próprio corpo quando a colocaram num quarto, cheio de camas de solteiro e roupas atiradas sobre alguns móveis antigos.




            A consciência foi voltando aos poucos e junto com ela lembranças de acontecimentos recentes e muito dolorosos, mas que pareciam cenas de filmes trágicos, tamanho o absurdo vivido por ela nos últimos dias. Willian estava morto. A cena não saía de sua cabeça. O som do tiro estava preso em sua memória. O corpo dele ficou atirado no asfalto enquanto os bandidos usaram o carro dela na fuga e a sequestraram. Naquele momento ela ainda pensava se tratar apenas de um assalto. E tentava enganar a si mesma, afirmando que Will ficaria bem e ela seria abandonada em alguma rua próxima.
            Não foi assim. Já num avião Beatriz conheceu quem comandava o esquema de prostituição a que vinha investigando para suas reportagens investigativas. Gabriela Alencastro. Loura, bela e cruel. O alento de Beatriz era saber que aquela mulher entraria na mira de Elizabeth. Precisava apenas ganhar tempo. Sua irmã, investigadora da Polícia Federal vinha perseguindo a quadrilha há muito tempo.
            __ Eu Bia. É um prazer conhecê-la. Apesar dos meus avisos que você ignorou teimosamente. Não precisava ser assim. Mas você e sua irmã têm uma tendência à coragem excessiva.
            __ Ela vai te pegar. Escute o que eu estou te dizendo. Ela vai te pegar Gabriela! Ela vai te pegar! Ela está muito perto de descobrir você.
            Gabriela era a ligação que Liza buscava entre o esquema de tráfico humano e o crime de lavagem de dinheiro na Montadora BTez. Mas agora, ao acordar naquele lugar estranho sem saber exatamente quanto tempo se passou Beatriz perguntava-se porque Gabriela não a matou. Ela estava ali por uma razão. Tinha de haver um razão.
            Esse questionamento era feito a Gabriela naquele momento por Gregory. Era ele a chefiar o esquema na Rússia. Gabriela vivia nos EUA e não tinha tempo nem vontade de sujar as mãos. As questões operacionais, como ela costumava chamar, eram responsabilidade de homens de sua confiança, um  em cada país onde fazia negócios. Ali na Rússia esse homem era Gregory. Ele cuidava para que todas as garotas vindas do exterior, a maioria ainda muito jovens, obedecessem e satisfizessem a clientela exigente. Ali eram atendidos homens de alto nível e eles não gostavam de mulheres arredias. Era Gregory quem as mantinha obedientes ou livrava-se das que não se adaptavam. Algumas iam para outros países, outras para boates de menor nível ou fazer iam para as ruas onde faziam ponto. Se não houvesse alternativa e a garota se mostrasse indomável ou imprestável uma morte discreta por overdose era o seu destino. O corpo de uma prostituta drogada nunca levantava muitas suspeitas. E algumas sortudas conseguiam ser compradas e ficam exclusivas de um só homem. Mas isso era para poucas.
            Gregory já tinha problemas demais com o que lidar e não entendia porque trazer uma mulher como Beatriz para o cativeiro. Tantas jovens sem estudo vinham da América do Sul achando que fariam dinheiro, eram fáceis de manter na linha e com seus corpos cheios de curvas agradavam aos russos. Estava na cara que Beatriz não estava nesse perfil. Era uma questão pessoal de Gabriela.
            __ Ela não é como as outras. Dá pra ver que é bem cuidada, mais velha e vai nos criar problemas. – Ele disse a chefe.
            __ Por isso mesmo, você irá lhe dar tratamento especial. Quero-a na vida logo, sem adaptação. E atenção com ela. Fala inglês então cuidado com os clientes que ela atender. Ela pode tentar pedir socorro para alguém mais “bonzinho”. Mande-a para os antigos.
            __ Ela é prostituta de luxo no Brasil?
            __ Não. Jornalista. E por culpa dela eu tive problemas com minha equipe de lá. Também é irmã de uma policial federam que vem incomodando meu sono.
            __ E você quer mantê-la aqui? Essa garota é um perigo aqui dentro! Temos de nos livrar dela!



            __ Você está questionando uma ordem minha? – Gabriela o encarou e ficou esperando uma resposta que não veio. – Ótimo. Ela fica. Ela é minha apólice de seguro contra a policial. Além disso merece pagar pelos problemas que me causou. Ela queria conhecer de perto o nosso negócio. Conseguiu.
            __ Está bem. Se você quer assim. – Gregory não tinha alternativa.
            __ Quero e será. E nada de prostituta de luxo. Quero-a no salão, em oferta para quem quiser. E não precisa cobrar muito. Não é lucro o que espero dela.
            __ Que bom. Porque eles costumam oferecer mais pelas novinhas. Mas ela parece bonita.
            __ É só a humilhação e o sofrimento dela que me interessa. O dinheiro conseguimos com as outras. Quero que ela implore para morrer por não aguentar mais.
            __ E quando ela fizer isso?
            __ Aí eu decidirei seu destino. Por enquanto preocupe-se apenas em domá-la.

____§§§____
            No Brasil também foram dias de apreensão. Naquela manhã Miguel abriu os olhos e tentou clarear os pensamentos. Parecia sonho. E apenas alguns instantes depois ganhou ares de pesadelo. Elizabeth. Ela esteve ali, seu cheiro estava nos lençóis. Seu gosto estava em sua boca. Mas ela havia desaparecido. Exatamente como na noite em que se conheceram. O toque do celular era insistente e o fez encarar a realidade. Para sua decepção, não era Elizabeth quem o chamava. Eram os problemas. E algo grave, irremediável.
            __ Alô!
            __ Miguel! Venha para casa! É uma emergência! – Ele reconheceu a voz de Rúbia.
            __ O que houve madre?
            __ A polícia ligou... Willian... Ele... Não tem família no Brasil e... A polícia quer falar com você. E não conseguiam contato pelo seu celular.
            __ Por quê? O que houve com Willian. Ele foi preso? – Com a cabeça girando Miguel sentia-se confuso.
            __ Não. Willian está morto. Querem que você reconheça o corpo.
            Passado o choque inicial veio à dor e o desespero. Precisou ir ao IML e nada preparou-o para ver o amigo morto na frieza daquele lugar. Sentiu aquela perda como não imaginava ser capaz. Chorou não apenas pela morte, mas pela forma como ocorrera. Por tiros, na frente de sua casa. Ninguém deveria morrer assim. E muito menos alguém como Willian. Depois teve de avisar a família de Willian. Outra tarefa ingrata. Os pais entraram em desespero. E ele, para ao menos proporcionar conforto naquela hora ofereceu-se para preparar o voo deles para o Brasil a fim de cuidar do translado do corpo. Willian seria enterrado em seu país Natal. Porém, isso poderia demorar alguns dias pois haveria pericia, procedimento comum por não se tratar de uma morte natural. E ainda havia uma pequena cerimônia de despedida para os amigos próximos.
            __ Eu sei que nada aliviará a dor. Mas contem comigo para o que precisarem.
            Depois da família precisou avisar aos amigos e lembrou-se de Beatriz. Quando ela não atendeu ao celular pensou tratar-se de uma reação a sua briga com Elizabeth. Ao ligar para Matheus, amigo de Liza e advogado, ficou sabendo que a namorada de Willian estava desaparecida e tudo indicava que havia sido sequestrada no mesmo momento em que ele fora assassinado. A polícia tentava naquele momento conseguir pistas de seu paradeiro. Não fora pedido resgate e o carro de Bia foi encontrado incendiado do outro lado da cidade.
            __ Se eu puder ajudar de alguma forma, qualquer coisa, basta me avisar. Eu não consigo falar com Liz.
            __ Ela não quer falar com você Miguel. E nesse momento não tem cabeça para nada. – Matt disse a Miguel de forma direta.
            Envolto num problema daquela gravidade Miguel não conseguiu procurar por Elizabeth. E quando tentou lhe telefonar ela ignorou suas chamadas. Ele não desejava piorar ainda mais a situação. Elizabeth tinha todas as razões para estar nervosa. Com Beatriz desaparecida ela deveria estar destruída. E por mais que desejasse ajudar não podia forçá-la. Só que agora ela era Elizabeth Benitez, sua esposa. Não estava mais sozinha e não podia sair assim de sua vida.
            Não foi difícil para ele descobrir o que fez o humor de Liz mudar drasticamente. Vir até ele, passarem a noite juntos e agora sequer conseguir ouvir sua voz ao telefone. Logo cedo, ao atender seu celular percebeu que ele não estava onde nem como o havia deixado. Na corrida para tirar a roupa com ela, na noite anterior, o aparelho foi para o chão, no bolso do casaco. Liz mexeu ali e muito provavelmente havia descoberto tudo sobre Alejandra. Ali havia mensagens da ex falando da gravidez. No mesmo instante ligou para a ex. Precisava resolver aquilo definitivamente.
            __ Pare de enviar mensagens. Quando eu quiser notícias... Do meu filho eu entro em contato. – Disse assim que ela atendeu.
            __ Só do bebê? E eu Miguel? Não mereço nenhuma atenção da sua parte?
            __ Não, não merece. Você sabia o que estava fazendo quando me levou, bêbado, para o seu quarto. E atrapalhou muito meu casamento. Agora arque com as consequências. Não quero te ver, nem falar com você Alejandra.
            __ Eu estou esperando o seu filho. O herdeiro dos Benitez! Não vai conseguir se livrar de mim.
            __ Você não é nada Alejandra. Se for inteligente, você voltará para sua vida na Espanha. E nós vamos suportar um ao outro da forma mais distante possível, apenas por esse bebê. Que você espertamente chama de “herdeiro”. Só isso. Se precisar de algo fale com madre. Esqueça que eu existo. Adeus!
            Não poderia estar mais arrependido da noite em que traiu Elizabeth com sua ex mulher. E o resultado daquela traição, um filho, parecia acabar com seu casamento. A verdade é que foi uma sequência de erros, de arrependimentos. E podia num futuro próximo também se arrepender da forma como estava tratando aquele bebê que, obviamente, não tinha culpa da sua irresponsabilidade. Simplesmente não tinha cabeça para lidar com todos os problemas da sua vida não se imaginava pai de uma criança com Alejandra.
            Os dias seguiram e Elizabeth não atendeu nenhuma das ligações de Miguel. Ele chegou a ir na sede da Polícia Federal, mas foi recebido por Tom. Sem muita cortesia, o superior de sua esposa informou que ela não estava, mas aconselhou-o a não voltar.
            __ Ela está desesperada com o sumiço da irmã. E, sinceramente, não é uma boa hora para você tentar falar com ela. – Tomaz lhe disse friamente.
            __ Elizabeth é minha esposa. Preciso vê-la.
            __ Ela não deseja te ver Miguel. – E assim ele foi encaminhado para a saída.
            __ Está bem. Mas diga a ela que desejo vê-la. E estou à disposição se precisarem de algo, qualquer coisa para a investigação. – Ele disse e saiu de cabeça baixa. Nada poderia fazer.
            Tom não tinha antipatia por Miguel, nem sabia dos últimos acontecimentos na vida daquele casal de amigos. Porém, conhecia Elizabeth há anos o suficiente para entender que ela lidava melhor com problemas profissionais do que sentimentais. E o sequestro de Beatriz a tinha destroçado. Fora ele a dar-lhe a notícia da morte de Willian. Isso quando Elizabeth lhe telefonou apavorada por um telefonema ameaçador e pelo fato de não conseguir falar com a irmã. Naquele momento ainda não estava confirmado o desaparecimento de Bia.
            Durante a conversa notou nela uma voz triste, abalada e só depois ela lhe disse estar divorciando-se de Miguel. Não disse a razão nem ele perguntou. Tinham coisas muito mais graves com o que se preocupar. Daquele momento em diante viu Elizabeth trabalhar sem parar nem mesmo para se alimentar. Ela não respeitava paradas para descanso, nem suas ordens de manter-se afastada devido ao envolvimento emocional.
            __ Essa investigação é da Polícia Civil, Elizabeth. Eles apostam em assalto seguido de morte. Estão trabalhando em outras hipóteses. Você não pode se envolver. – Tom disse tentando frear Elizabeth.
            __ Se pensam isso são incompetentes! – Elizabeth gritou ao chefe. – Isso foi retaliação a minha investigação e a reportagem dela! Eu recebi uma ligação avisando! A mesma quadrilha que nós investigamos fez isso. Eu não vou ficar parada enquanto a polícia aguarda o corpo da minha irmã aparecer.
            A investigação oficial podia ser de Polícia Civil por enquanto, mas assim que ficasse evidente a ligação do crime com o esquema de tráfico de pessoas o processo seria encaminhado para a Polícia Federal. E nesse caso, mesmo que ela não fosse a investigadora oficial devido ao parentesco com Bia iria assumir as rédeas de tudo. Era sua irmã. E estava viva. Sentia isso. Então não ficaria calada vendo erros serem cometidos naquela investigação. Algumas ligações para contatos na Polícia Civil, os deixou a par da seriedade da situação. E ganhou do delegado responsável a autorização de ver o inquérito e entrar no apartamento de Willian.
            __ Meus homens já revisaram. Não encontraram muita coisa. Ao que aparece nas câmeras de segurança sua irmã deixou o apartamento apressada e seguiu para o carro quando foi abordada pelos assaltantes. Willian desceu depois, tentou reagir e foi alvejado. Eles a levaram na fuga. O carro foi encontrado completamente destruído pelo fogo. Mas conseguimos recuperar o número do chassi. Não havia corpo carbonizado. – Disse o delegado.
            __ Claro. Porque Beatriz está viva. – Elizabeth respondeu.
            __ Não temos como afirmar isso Elizabeth. E você está emocionalmente envolvida.
            __ Sim estou. Porém, isso não fecha os meus olhos. Eles me telefonaram e avisaram do crime. Eu sei do que estou falando. E tenho o dobro do seu tempo de polícia! – Elizabeth estava se descontrolando.
            __ Mas não manda na minha delegacia! Eu estou colaborando com você Elizabeth. Mas não posso mudar o rumo da investigação porque você acredita que o caminho é outro. Preciso de provas, indícios. Você sabe! Eu vou mandar rastrear a ligação que recebeu.
            E não iria encontrar nada. Porque a quadrilha não era amadora. Esse rastro já não existia. Porém ele estava certo. E ela foi obrigada a baixar o tom e respeitar a autoridade policial responsável pelo caso.
            __ Ok, eu peço desculpas. Mas, por favor, leve em consideração as informações que lhe passei. Beatriz dos Santos não está morta. Ela está com essa quadrilha que trafica pessoas. E se não a mataram junto do namorado, é porque sabem que isso me mantém refém deles na minha investigação.
            __ Então não faça o jogo deles Elizabeth. Siga no seu caso e pegue-os. Eu me dedicarei a encontrar Beatriz.
            Liza sabia que ele não a tinha lhe levado a sério, não o bastante, ao menos. E precisava ela mesma fazer algo. Ao olhar para o celular, viu novas ligações e recados de Miguel. Queria atender, ouvir a voz dele, encontrar alguma segurança naqueles braços. Simplesmente não podia. Seguiu trabalhando como pôde e evitando pensar em seu marido. Também evitava pensar no filho que esperava e escondia dele. Miguel seria pai do filho de Alejandra. E também, do que estava dentro de sua barriga. E não havia meio de resolver isso. Cada vez mais convicta de que o silêncio era a melhor das alternativas Elizabeth seguia ignorando as ligações de Miguel.
            __ Ele não vai desistir Liza. – Rebeca vinha sendo mais do que uma colega e amiga. Era sua confidente. – Ele tem direito e responsabilidade por esse bebezinho aí.
            __ E no que está na barriga de Alejandra também.
            __ Ele errou. Na verdade seu marido foi um safado difícil de perdoar. Eu entendo! Se fosse o meu, já teria dado uma surra nele. Mas mesmo que se separem, não pode impedi-lo de ser o pai do seu filho. – Rebeca entendia que Liza estava com problemas demais na cabeça. E queria evitar que ela encontrasse novos.
            __ Eu vou contar. Um dia. Agora não é o melhor momento. – Era essa a sua decisão final.
            Fugir de Miguel funcionou por alguns dias. Mas não muitos. Eles ficaram frente a frente durante o velório de Willian. A missa em homenagem ao amigo reuniu todos os que gostavam dele. E também muitos veículos de imprensa. O sequestro de Beatriz tinha chegado à mídia e Elizabeth usava isso para forçar a polícia a avançar nas investigações. Ela dava uma entrevista quando ouviu a voz de Miguel às suas costas.

            __ Será que podemos conversar?

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